Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas? Quem dentre vós, com as suas preocupações, pode acrescentar um só côvado à duração da sua vida?
–Mateus 6, 25-27
No texto “Ser cristão é desconfortável”, eu afirmei que nem o sofrimento nem o prazer são objetivos finais em si, mas sim servir a Deus. Prazer e sofrimento são apenas meios de servi-lo. Quando as experiências são prazerosas, elas nos dão a oportunidade de sentir um pedaço da glória de Deus. E, quando são sofrimentos, eles nos permitem mostrar a Deus que confiaremos nele e serviremos a ele a todo momento—o sofrimento é como um sacrifício no qual você tem a oportunidade de mostrar a Deus o potencial máximo da sua servitude.
Portanto, que motivo temos para nos preocupar com qualquer coisa? Se nosso objetivo é sempre servir a Deus, e se tanto o sofrimento quanto o prazer são meios válidos de se atingir esse objetivo, não há razão para preocupação. Não há medo, irritação, ou qualquer outro tipo de obstáculo que seja problema para aquele que mantém Deus como o centro de sua vida.
Mas, na prática, pode ser mais fácil falar do que fazer. Quando o sofrimento está à sua porta, e especialmente quando você vê outras pessoas sendo afetadas, é fácil se permitir ser dominado e se esquecer de Deus. Porém, precisamos reconhecer que é nesses momentos que nossa fé se torna ainda mais importante—e não menos. Por acaso faria algum sentido ter fé apenas nos momentos bons? Por acaso faz algum sentido um doente abandonar seus remédios? O doente é especialmente quem mais precisa do remédio—e, similarmente, a pessoa que passa por dificuldades é especialmente quem mais precisa de fé em Deus. Pois Deus está conosco a todo momento, e especialmente nos ajudando nos momentos ruins.
Vejamos um pedaço da história de Felicidade e Perpétua, duas mártires do cristianismo. Na história, narrada em primeira pessoa pela Perpétua, o pai dela tenta convencê-la a abrir mão de sua fé para que seja poupada da prisão e da morte:
Alguns jovens catecúmenos foram presos: Revocatus e sua escrava Felicidade, […], e com eles Vibia Perpétua, uma mulher recém-casada […]. Ela tinha aproximadamente 22 anos e tinha um filho pequeno que ainda amamentava. (A partir de agora a história será em primeira pessoa nas palavras da própria Perpétua.)
Enquanto estávamos presos, meu pai, por amor a mim, tentou me persuadir a abrir mão da minha fé. “Pai”, eu disse, “está vendo esse vaso?”.
“Sim, estou”, respondeu ele.
E eu falei: “Eu poderia chamá-lo de alguma outra coisa que não seja aquilo que ele é?”
E ele respondeu: “Não.”
“Nesse caso, eu também não posso ser chamada de qualquer outra coisa, pois sou cristã.”
[…] Finalmente, ele saiu e foi embora, e levou junto seus argumentos diabólicos.
Alguns dias depois […] meu pai voltou, e veio novamente me ver para tentar me persuadir de novo.
“Minha filha”, disse ele, “tenha piedade do seu pai! Se eu mereço ser chamado de seu pai, se eu te favoreci acima dos seus irmãos, se eu te criei bem. Não me abandone para passar vexame na frente dos outros homens! Pense nos seus irmãos, na sua mãe, na sua tia, no seu filho que não vai poder te ver novamente. Abra mão de seu orgulho! Você vai destruir a todos nós! […]”
Eu tentei confortá-lo dizendo: “Tudo vai acontecer de acordo com o plano de Deus; você pode ter certeza que ele não nos abandona, mas estamos todos em seu poder”.
Traduzido do original em inglês; a história original pode ser acessada aqui.
Percebamos que Perpétua tinha todo motivo para se desesperar. Ela tinha um marido, tinha um filho, pai, mãe, além de outros familiares. O que aconteceria com o filho dela—que ainda dependia do leite materno—depois que ela morresse? O que aconteceria com todo o resto da sua família? No entanto, Perpétua lembrou-se que todos estamos sob o poder de Deus. O sofrimento, naquela ocasião, era a forma correta de servi-lo. E ela não permitiu que os argumentos do pai a fizessem se desviar do ponto central de nossas vidas, que é Deus. Ela certamente não sabia o que aconteceria com sua família caso ela permanecesse presa ou morresse, mas isso é mais um motivo para ter fé em Deus, e não para abandoná-lo.